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O escritor como criança

E Sergio Pitol, de quem extraí a citação de Faulkner (a cultura é o palimpsesto e todos escrevemos sobre o que os outros já escreveram), acrescenta: Um romancista é um homem que ouve vozes, coisa que o assemelha a um demente." (…) creio que na verdade essa imaginação desenfreada nos torna mais parecidos com as crianças que com os lunáticos. Acho que todos os seres humanos entram na existência sem saber distinguir direito entre o real e o que é sonhado; de fato, a vida infantil é em boa parte imaginária. O processo de socialização, o que chamamos de educar, ou amadurecer, ou crescer, consiste precisamente em podar as florescências fantasiosas, fechar as portas do delírio, amputar nossa capacidade de sonhar acordados; e ai de quem não souber selar essa fissura com o outro lado, porque provavelmente será considerado um pobre doido. Pois bem, o romancista tem o privilégio de continuar sendo criança, de poder ser um doido, de manter contato com o informe.“O escritor é um ser que nunca chega a ficar adulto”, , diz Martin Amis em seu belo livro autobiográfico Experiência, e ele deve saber disso muito bem, porque tem todo o aspecto de um Peter Pan um tanto murcho que se nega teimosamente a envelhecer.

Lendo: A louca da casa de Rosa Montero 📚

IAs, fascistas, cores e sinais de pontuação

Coincidência temática nos dois textos que apareceram agora no agregador de feeds RSS que uso.

Primeiro Manuel Moreale comentando uma postagem sobre uma das marcas de textos produzidos por IAs ser o uso exagerado de travessão e o receio da escritora de os seus textos serem confundidos como escritos por inteligência artificial.

No you can’t have them. Yes, we can still use em dashes. And no, I’m not going to stop using them because fucking chatgpt is abusing them. What if they tweak the instructions next week and tell it to use more full stops or commas? What are we gonna do then? Stop using those as well? Hell no. I’ll keep writing however I want, and if someone decides to stop reading what I write because they suspect it’s AI-generated because I use too many em dashes, or parentheses, or any other punctuation or word or whatever, well, good riddance. I’m not gonna miss you.

Na sequência, Marco Arment refletindo sobre a cor laranja do recém-anunciado novo modelo do iPhone Pro e a sua associação quase automática com Trump, a quem Tim Cook vem apoiando publicamente a exemplo de outros CEOs de big techs.

I’ve seen this theory floated a few times — but no.

  1. With the timescale of iPhone-production planning, these colors were probably selected before the 2024 US presidential election.

  2. Trump would hate any association with orange. That’s something his haters say, not him or his fans. (Gold or red would appeal to him more.)

  3. Don’t let him own this color association! Orange was cool long before these assholes were alive, and it’ll be cool long after they’re dead.

O caderninho de Natália Ginzburg

(…) Mantinha um caderninho no qual escrevia certos detalhes que eu ia descobrindo ou pequenas comparações ou episódios que me prometia inserir nos contos. Por exemplo, escrevia assim no caderninho: “Ele saía do banheiro arrastando atrás de si a faixa do roupão como uma longa cauda”; “Como fede a latrina desta casa — lhe disse a menina. Quando vou ao banheiro, não respiro nunca — acrescentou tristemente”; “Seus caracóis como cachos de uva”; “Cobertas vermelhas e pretas sobre a cama desfeita”; “A face pálida como uma batata descascada”. Porém descobri que dificilmente essas frases me serviam quando escrevia um conto.

O caderno se tornava uma espécie de museu de frases, todas cristalizadas e embalsamadas, muito dificilmente utilizáveis. Tentei infinitas vezes meter em algum conto as cobertas vermelhas e pretas ou os caracóis como cachos de uva, e jamais consegui. Portanto o caderninho não podia servir. Então compreendi que não existe poupança neste meu ofício. Se alguém pensa “este detalhe é bonito e não quero gastá-lo no conto que estou escrevendo agora, aqui já tem muita coisa bonita, vou poupá-lo para outro conto que escreverei”, então o detalhe se cristaliza dentro dele e perde toda serventia.>

Quando alguém escreve um conto, deve pôr dentro dele o melhor que possuiu e que viu, o melhor que recolheu da vida. E os detalhes se consomem e estragam quando os levamos conosco sem usá-los por muito tempo. Não somente os detalhes, mas tudo, todos os achados e todas as ideias.

Natália Ginzburg em “O meu ofício”, In: Pequenas virtudes.