Posts in "Livros"

O caderninho de Natália Ginzburg

(…) Mantinha um caderninho no qual escrevia certos detalhes que eu ia descobrindo ou pequenas comparações ou episódios que me prometia inserir nos contos. Por exemplo, escrevia assim no caderninho: “Ele saía do banheiro arrastando atrás de si a faixa do roupão como uma longa cauda”; “Como fede a latrina desta casa — lhe disse a menina. Quando vou ao banheiro, não respiro nunca — acrescentou tristemente”; “Seus caracóis como cachos de uva”; “Cobertas vermelhas e pretas sobre a cama desfeita”; “A face pálida como uma batata descascada”. Porém descobri que dificilmente essas frases me serviam quando escrevia um conto.

O caderno se tornava uma espécie de museu de frases, todas cristalizadas e embalsamadas, muito dificilmente utilizáveis. Tentei infinitas vezes meter em algum conto as cobertas vermelhas e pretas ou os caracóis como cachos de uva, e jamais consegui. Portanto o caderninho não podia servir. Então compreendi que não existe poupança neste meu ofício. Se alguém pensa “este detalhe é bonito e não quero gastá-lo no conto que estou escrevendo agora, aqui já tem muita coisa bonita, vou poupá-lo para outro conto que escreverei”, então o detalhe se cristaliza dentro dele e perde toda serventia.>

Quando alguém escreve um conto, deve pôr dentro dele o melhor que possuiu e que viu, o melhor que recolheu da vida. E os detalhes se consomem e estragam quando os levamos conosco sem usá-los por muito tempo. Não somente os detalhes, mas tudo, todos os achados e todas as ideias.

Natália Ginzburg em “O meu ofício”, In: Pequenas virtudes.

Cantinho para leitura

Manton o responsável pelo Micro.blog, misto de rede social e serviço de hospedagem web, publicou recentemente uma breve postagem sobre o rearranjo que fez no seu espaço de leitura. Fiquei pensando em organizar algo semelhante para mim: um cantinho da casa com uma cadeira minimamente confortável, bem iluminado, arejado e, de preferência num cômodo mais silencioso do apartamento.

Qual não foi a minha surpresa ao saber que já disponho de um lugar com essas características, mas que eu ainda não associava a um espaço para leitura como o faço como a minha cama e o sofá da sala.

Cantinho para leitura que já me esperava aqui em casa.

Terminei agora de ler agora Primeira pessoa do singular, de Haruki Murakami. 📚

Livro de contos em que o autor japonês se assume como narrador e levanta a dúvida sobre o quão autobiográficas são as tramas narradas. Alguns temas presentes em obras anteriores retornam aqui: referências à música ocidental - sobretudo música clássica - e animais antropomorfizados, por exemplo.

A morte em Jorge Amado e a perda de um tio

Não, não era a mesma coisa a presença da morte lá na cidade da Bahia, rápida e banal nas rodas de um automóvel, nos leitos dos hospitais, nas páginas de desastres e crimes dos jornais. Era leviana e secundária, por vezes não merecia mais de duas linhas nas gazetas, desaparecendo em meio a tanta vida a cercá-la, a tanto ruído e luta, não havia lugar para ela nos corações apressados, dissolvia-se sua sombra nas luzes, e os risos não deixavam ouvir seu murmúrio. Seu podre bafo, como iriam senti-lo as mulheres envoltas em perfume, em cálidas vagas de desejo? Passava a mote despercebida, apenas executava sua tarefa e já desaparecia, não havia tempo a perder com ela em meio a tanta ânsia e pressa de viver.

“Fulano morreu”, anunciava-se, nos jornais, nos rádios, nas conversas, dizia-se “coitado!, pobre dele!, já foi tarde, era tão moço ainda…”, e não se falava mais nisso, havia muito assuntoa comentar, muito riso a rir, muita ambição a satisfazer, muita vida a viver.

Em Periperi era diferente: não era vida feita de trabalho e luta, de ambição e dificuldades, de amor e ódio, de esperança e despero, a que ali viviam ou vegetavam. Ali o tempo se alongava, nada o apressava, os acontecimentos duravam acontecendo. E o mais longo de todos era a morte, jamais banal e rápida, sempre fulgurante e demorada, apagando, com sua chegada, todas aparências de vida do lugar.

Jorge Amado, em Os Velhos Marinheiros ou o Capitão de Longo Curso

Escrevo de Tabatinga, onde estou desde ontem sem conseguir largar o Jorge Amado sobre o qual falei nos últimos posts.

Pouco após passar pelo trecho do livro citado acima, recebi a notícia de que o meu tio Cesar, irmão de mainha, faleceu. Ele já vinha bastante doente há mais de um ano e desde o fim de 2023 teve qualquer recuperação desacreditada pelos médicos.

Ainda que nós familiares não tenhamos dúvidas de que sua passagem foi um descanso dado o visível sofrimento físico que ele enfrentava cotidianamente, fica esse sentimento estranho de conformação com a ideia de que “ele já vinha sofrendo tanto”, como se morte dele não estivesse não estivesse acontecendo na Periperi que Jorge Amado representou em Os Velhos Marinheiros, mas na Salvador idealizada no livro.

Vai ver são apenas os vestígios ainda não expurgados da minha formação cristã, que lá do incosciente continuam cobrando de mim uma atitude expiatória diante da morte. De Tio César vão ficar as lembranças da maneira leve e inconsequente com que levava a vida, da convivência mais intensa nos anos de veraneio em Cotovelo, além de dois versos do hino do Fluminense, frase-síntese que entoava quando o pileque dava os primeiros sinais:

Sou tricolor de coração sou to time tantas vezes campeão

Descanse em paz, tio.

Jorge Amado a caminho

Após a tentativa frustrada de ontem de pegar emprestado um Jorge Amado na Biblioteca Câmara Cascudo, acabei de comprar Os velhos marinheiros, ou, O capitão-de-longo-curso. Com a previsão de chegada até sexta-feira, essa vai ser a minha leitura do fim de semana em Tabatinga.

Os quase 50 livros publicados pelo autor baiano dificultaram a escolha do título em que vou debutar na sua obra, mas após descobrir que Os Velhos Marinheiros está na lista dos favoritos da vida de Tom Crithlow, um dos meus escritores favoritos na web aberta, fiz a minha escolha.

O livro físico estava custando quase o dobro do ebook, o que por si só já justificaria a minha opção de leitura no Kindle, mas como Márcia manifestou o interesse em voltar à obra de Jorge Amado, peguei o impresso nessa edição da Companhia das Letras, para que compartilhemos com mais facilidade.

Primeiras impressões sobre a Biblioteca Câmara Cascudo

Interior da Biblioteca Câmara Cascudo Parte do acervo disponível para empréstimo na Biblioteca Câmara Cascudo

Todos temos lacunas em nossos repertórios de leitores, ouvintes de música ou amantes de filmes. Dentre as minhas, uma das que mais venho pensando em preencher é Jorge Amado, de quem até hoje nada li e cuja obra só tive acesso através das adaptações para telenovelas e cinema.

Hoje, no meu intervalo para almoço, saí decidido a começar o meu encontro com o escritor baiano.

Costumo almoçar em self-services nas redondezas da Secretaria Municipal de Educação. Um deles é o Pitéu, que fica na Rua Potengi, exatamente em frente à Biblioteca Câmara Cascudo. Desde que o equipamento foi reinaururado após uma reforma quase interminável, eu vinha cogitando uma visita. Hoje, enquanto deglutia a honesta carne de sol da nata oferecida pelo restaurante e observava a fachada da biblioteca, decidi atravessar a rua após pagar a conta.

Fui à biblioteca com três objetivos principais: fazer o meu cadastro para poder pegar livros emprestados, explorar rapidamente o prédio e o acervo e encontrar alguma obra de Jorge Amado. Pelas minhas experiências recentes em visitas a equipamentos culturais reinaugurados nos últimos anos pelo governo estadual - mais especificamente a Fortaleza dos Reis Magos e o Complexo Cultural da Rampa - eu não tinha grandes espectativas, portanto não me surpreendi com a falta de estrutura da biblioteca. Resumo nos tópicos abaixo:

  • Já se passaram mais de dois anos da reabertura e a Câmara Cascudo ainda não dispõe de um sistema digital para cadastro dos usuários e processamento dos empréstimos.
  • A estrutura de ar-condicionado central do prédio não funciona, de maneira que apenas a sala com o acervo já catalogado é climatizada.
  • O acervo disponível para empréstimo não foi renovado para a reabertura da biblioteca, além de não ter passado por nenhum procedimento de higienização. Sem exceção, todos os livros que manipulei estavam muito empoeirados, mesmo se considerando serem exemplarem revativamente antigos.

Explorei com mais atenção as seções de literatura nacional e informática. Nessa última, até pela pouca idade do tema, havia um acervo com livros mais bem conservados, ainda que mal higienizados. Cheguei a folhear e cogitei pegar emprestado um sobre web design, mas era uma edição do fim década de 1990 e as linguagens que o material parecia abordar não seriam úteis para a customização deste blog, a principal razão do meu interesse pela temática.

No corredor de literatura brasileira fui direto à letra A de Amado e no caminho até lá me deparei com a situação já mencionada: acervo desatualizado e, mais importante, mal higienizado. Antecipando-me aos que me acusarão de etarismo editorial, o meu incômodo não é exatamente com a data de publicação dos livros disponíveis. Por mais que eu tenha sentido falta de o acervo da biblioteca contemplar autores brasileiros e estrangeiros contemporâneos, a falta de higienização que tem insistido em destacar tem um manifestação tátil nessa biblioteca estadual. Uma rápida manueada em alguns livros aleatórios foi suficiente para deixar as minhas mãos bem empoeiradas e desencadear reações alérgicas.

Fui um frequentador assíduo da Biblioteca Central Zila Mamede durante a minha graduação e mestrado na UFRN e, tanto entre os livros relacionados nas ementas das disciplinas que cursei, quanto os de literatura e outras categorias que eu tomava emprestado sem obrigações acadêmicas, estavam exemplares com décadas de publicação e amarelados pela ação do tempo, mas ainda assim limpos sem a poeira que encontrei na Câmara Cascudo.

É lamentável que essa situação aconteça naquela que, excetuando-se a BCZM, é considerada a maior biblioteca do Rio Grande do Norte, após anos fechada para requalificação, localizada numa cidade do tamanho de Natal, beirando os 800.000 habitantes e capital de uma das unidades da federação. Esse sentimento fica ainda mais forte após experiências em bibliotecas de outras cidades, como foi o caso da que tive em Medellin no começo desse mês.

Dessa forma, meu debute na obra de Jorge Amado vai ser adiado por mais alguns dias. Vou buscar em algum sebo da cidade ou recorrer ao único que pode garantir uma leitura sem poeira: o Kindle.

Livros lidos em 2023

Livros lidos em 2023.

Mais uma vez Haruki Murakami esteve entre os mais lidos do ano. Dessa vez com um romance em dois volumes e um não-ficção. 2023 também foi o ano em que uma leitura foi levando a outras. Foi continuando a explorar a obra de Alejandro Zambra, sobretudo Poeta Chileno, que finalmente cheguei a Natalia Ginzburg. Partindo de Amanhã, Amanhã e Ainda Outro Amanhã, fui buscar outros títulos de Gabrielle Zevin e cheguei ao delicioso A Vida do Livreiro A. J. Fikry, que por sua vez me levou a Bem-vindos à Livraria Hyunam-dong.

Mantendo a tradição, segue a relação de livros lidos ao longo do ano, com alguns comentários sobre os títulos que mais me chamaram a atenção:

Crônicas
Bob Dylan

Livro de memórias do bardo judeu romântico de Minessota focado na profissionalização da sua carreira com a chegada a Nova Iorque, em 1961, e dali em diante. Além dos relatos esperados sobre os bastidores da cena musical novaiorquina daquela época, traz reflexões do cantautor sobre a sua intencionalidade no trato com o folk americano e sobre as dificuldades que enfrentou para lidar com a cobrança por, sem escolha, ter ser tornado o porta-voz de uma geração.

O Assassinato do Comendador - Vol. 1
Haruki Murakami

Continuo na minha obsessão por Murakami. Nesse que foi um dos últimos títulos lançados no Brasil, o autor japonês mais uma vez desenvolve uma história repleta de referências à cultura ocidental, sobretudo à música de concerto europeia e ao jazz dos Estados Unidos, ambientada num contexto de realismo fantástico e gatos. Muitos gatos.

O Assassinato do Comendador - Vol. 2
Haruki Murakami

Continuo na minha obsessão por Murakami. Nesse que foi o último título lançado no Brasil, o autor japonês mais uma vez traz uma desenvolve uma história repleta de referências à cultura ocidental, sobretudo à música de concerto europeia e ao jazz dos Estados Unidos, ambientada num contexto de realismo fantástico e gatos. Muitos gatos.

Abandonar um Gato
Haruki Murakami

Aqui Murakami mobiliza memórias de infância e reflete sobre algumas das suas relações familiares - especialmente com o pai - enquanto evidencia muitos traumas do povo japonês que experienciou a Segunda Guerra Mundial e os seus desdobramentos no país. É também nesse livro onde o autor revela o que provavelmente é a origem da sua obsessão por gatos e da presença recorrente dos bichanos na sua obra.

Poeta Chileno
Alejandro Zambra

Em mais uma história ambientada em Santiago, me vi compreendendo uma série de referências a lugares, comidas e da capital do Chile, que pude experimentar nas duas vezes em que estive na cidade.

Da mesma forma, as pequenas piscadelas que Zambra dá aos leitores da sua geração (sou de 82, ele de 75), sobretudo ao citar músicas, bandas, e videogames mais universais e caros a quem cresceu nos anos 1980 e 1990 e estava minimamente atento à cultura pop daquele período, criam um vínculo que me parece bem mais natural do que em outras obras que lançam mão de referências generacionais, como Jogador Nº 1, de Ernest Cline.

Aqui escrevi mais a respeito das minhas impressões sobre Poeta Chileno.

Meus Documentos
Alejandro Zambra

Lado C: a Trajetória Musical de Caetano Veloso Até a Reinvenção com a BandaCê
Luiz Felipe Carneiro e Tito Guedes

Amanhã, Amanhã, e Ainda Outro Amanhã
Gabrielle Zevin

A Vida do Livreiro A. J. Fikry
Gabrielle Zevin

Bem-vindos à Livraria Hyunam-dong
Hwang Bo-reum

Léxico Familiar
Natália Ginzburg

A Conspiração do Violino
Brendan Slocumb


Desde 2016 venho listando as minhas leituras anuais. Veja que livros foram lidos por aqui em anos anteriores: 2022, 2021, 2020, 2019, 2018, 2017, 2016.

Todos esses compilados anuais estão reunidos aqui.

Poeta Chileno

Ontem à noite voltei à obra de Alejandro Zambra através de Poeta Chileno. Mais uma vez fisgado pelo realismo sem firulas da prosa do escritor santiaguino.

Em mais uma história ambientada em Santiago, me vi compreendendo uma série de referências a lugares, comidas e da capital do Chile, que pude experimentar nas duas vezes em que estive na cidade.

Da mesma forma, as pequenas piscadelas que Zambra dá aos leitores da sua geração (sou de 82, ele de 75), sobretudo ao citar músicas, bandas, e videogames mais universais e caros a quem cresceu nos anos 1980 e 1990 e estava minimamente atento à cultura pop daquele período, criam um vínculo que me parece bem mais natural do que em outras obras que lançam mão de referências generacionais, como Jogador Nº 1, de Ernest Cline.

Ler Alejandro Zambra mais uma vez tem feito pensar sobre um aspecto da minha produção artística que eventualmente retorna às minhas reflexões: a dualidade “local-universal".

São impressões semelhantes às que tenho tido ao imergir na obra de Haruki Murakami ao longo dos anos. Sem exceções, ao longo da sua produção de ficção, o autor japonês abusa do recurso a citações à cultura ocidental, sobretudo a música e compositores, ao passo que não abre mão de especificar detalhes, como nomes de ruas, bairros, estações de trem, modos de preparos de alimentos, específicos das cidades japonesas em que as suas histórias se desenrolam.

Em algumas composiões minhas mais recentes, venho conscientemente tentar lançar mão de referências tipicamente natalenses, como é o caso da “camisa do Alecrim” que o narrador da letra da canção Desapego menciona.

O verso mencionado começa por volta de 20s

De certa maneira, porém, me preocupo com a forma com que essas referências aparecem nas minhas músicas, de modo que possam fazer sentido para ouvintes que não compartilham das experiências de viver no lugar de onde escrevo.

Por outro lado, me interesso muito mais por essas pequenas inserções, nas minhas letras, de fragmentos da experiência do que é ser natalense, do que propriamente fazer da canção uma listagem de supostas qualidades da cidade ou do estado em que nasci e onde vivo.

Continuarei atento a como essa questão tem sido abordada na música que consumo e em outras expressões artísticas.

Amanhã, amanhã e ainda outro amanhã

Recentemente assisti a Amor Platônico, na Apple TV+. A série se desenvolve a partir da amizade entre Sylvia (Rose Byrne) e Will (Seth Rogen). A despeito de diálogos previsíveis e sem muita criatividade em alguns momentos, a produção me prendeu pela forma como brinca com a expectativa em torno do imininente relacionamento amoroso entre as duas personagens principais.

Premissa semelhante aparece em Amanhã, Amanhã e Ainda Outro Amanhã (Tomorrow, Tomorrow and Tomorrow), livro de Gabrielle Zevin que terminei de ler ontem e tem me mantido extasiado. Chamo atenção para a semelhança com a premissa de Amor Platônico, mas a quebra de expectativa pelo romance que não acontece nem me parece a principal questão abordada na obra. Relacionamentos abusivos, mulher e trabalho, inclusão de pessoas com deficiência e preconceito étnico-racial são temáticas enfocadas pela autora, tendo como eixo principal uma história que gira em torno de videogames: Sam e Sadie, protagonistas da história se conhecem e tornam-se amigos a partir de uma circunstância que os leva a jogar videogames juntos em um hospital ao longo de alguns anos e, mais a frente, viram desenvolvedores dos seus próprios jogos.

Para uma geração que cresceu com videogames e computadores ao longo dos anos 1990, o livro é cheio de referências e piscadelas, mas de uma maneira mais orgânica e menos superficial do que outras obras como Jogador N°1, que também se estruturam em referências a videogames e outros elementos das cultura pop.

Grata surpresa que me fez buscar outras obras da autora: A vida do livreiro A. J. Fikry, outro título publicado por Gabrielle Zevin editado em português, já furou a fila por aqui como próximo a ser lido.

Livros lidos em 2022


Livros lidos em 2022.

Mais uma vez Haruki Murakami integrou a minha lista de lidos. 2022 foi o ano em que descobri Alberto Mangel e a sua escrita envolvente sobre livros e literatura. Também enveredei por algumas leituras de obras de críticos de música como Luiz Felipe Carneiro e Ricardo Alexandre, descobri a obra do chileno Alejandro Zambra e li o meu primeiro Philip Roth, além do primeiro não-ficção de Paul Auster.

Mantendo a tradição, segue a relação de livros lidos ao longo do ano, com alguns comentários sobre os títulos que mais me chamaram a atenção:

A Marca Humana
Philip Roth

Minha primeira experiência com Philip Roth. Lançado em 2000, o livro do autor parecia antecipar reflexões sobre o que hoje a gente chama de cultura de cancelamento e colorismo. Outro aspecto latente em toda a obra é a questão das identidades fragmentadas, problematizada na trajetória do protagonista Coleman Silk.

A Invenção da Solidão
Paul Auster

Aqui Paul Auster reflete sobre a sua relação com o pai ao longo dos tempos, logo após a morte deste e ao se ver precisando lidar com as lembranças materiais e memórias afetivas que surgiam à medida que explorava o apartamento do pai, agora desocupado.

Encaixotando minha biblioteca
Alberto Manguel

Conheci esse livro através de indicação na newsletter de Gaía Passarelli. Na obra, Alberto Manguel faz uma série de reflexões sobre livros, literatura e crítica literária, enquanto tinha que lidar com o encaixotamento da sua volumosa biblioteca, ao se ver na situação de precisar se mudar de uma ampla casa no interior da França, para Nova York.

Com Borges
Alberto Manguel

Borges perdeu a visão aos 55 anos, em consequência de uma condição genética. Em razão disso, passou a só ter acesso ao conteúdo de livros através de amigos com quem contava como leitores. Alberto Manguel foi um deles e esse pequeno livro é um delicioso relato do período em que Manguel conviveu com o autor de O Aleph.

Four Thousand Weeks: Time Management for Mortals
Oliver Burkeman

Há pelo menos 10 anos venho me interessando muito sobre discussões a respeito de produtividade e o seu entorno, de aplicativos para gerenciamento de tarefas a abordagens como o GTD. Após um aumento considerável em meus níveis de ansiedade, problematizado em sessões de terapia e durante a leitura de Sociedade do Cansaço, de Byung-Chul Han, passei a ter um entendimento mais cético em relação a essa busca por produtividade. O livro de Oliver Burkeman traz reflexões inspiradoras e convincentes sobre o tema.

Lado C: a trajetória musical de Caetano Veloso até a reinvenção com a Banda Cê
Luiz Felipe Carneiro e Tito Guedes

No piloto do excelente podcast Discoteca Básica, Ricardo Alexandre sugere alguns trabalhos de jornalismo musical a se seguir. Dentre essas sugestões está o canal Alta Fidelidade, no Youtube, de Luiz Felipe Carneiro, autor do livro.

A obra foca no período em que Caetano trabalhou com a bandaCê, no Cê, Zie & Zie e Abraçaço, mas também aborda a experiência do compositor com outras bandas como a Black Rio e a Outra Banda da Terra.

Em relação à trilogia lançada entre 2006 e 2012, fica a constatação da minha caretice e ignorância no momento em que ouvi os dois primeiros discos. Ouvi bem pouco o Zie & Zie e gostei de imediato dos outros dois, apesar de ter recebido com estranheza a crueza e minimalismo dos arranjos de Cê. À época eu interpretava aquela proposta estética mais como limitação dos músicos que acompanhavam Caetano, do que uma escolha intencional e calculada. O cuidado que o livro teve em apresentar as trajetórias individuais dos integrantes da bandaCê trouxeram um contexto que me permitiu compreender melhor aqueles trabalhos.

Cheguei bem a tempo de ver o palco desabar: 50 causos e memórias do rock brasileiro
Ricardo Alexandre

Livro delicioso de Ricardo Alexandre, do já mencionado Discoteca Básica. Aqui o autor faz um relato bastante pessoal da sua trajetória enquanto crítico musical de veículos como a Bizz e Estadão e de como a sua própria carreira acompanhou as flutuações da indústria fonográfica entre o começo dos anos 1990 e o final da primeira década dos anos 2000. Também vale por várias histórias de bastidores de bandas como Skank, O Rappa, Los Hermanos, Pato Fu, Raimundos e várias outras.

Caçando Carneiros
Haruki Murakami

Após o anoitecer
Haruki Murakami

Antropoceno: notas sobre a vida na Terra
John Green

Falso Espelho
Jia Tolentino

Cidade Aberta
Teju Cole

O Efeito Rosie
Grame Simsion

Bonsai
Alejandro Zambra

A Vida Privada das Árvores
Alejandro Zambra


Desde 2016 venho listando as minhas leituras anuais. Veja que livros foram lidos por aqui em anos anteriores: 2021, 2020, 2019, 2018, 2017, 2016

Todos esses compilados anuais estão reunidos aqui.

Sobre a falta de informações técnicas nos serviços de streaming

Hoje me considero bastante adaptado aos serviços de streaming como principal plataforma para ouvir música. Ainda que por puro fetichismo e apego sentimental eu ainda guarde alguns poucos CDs, e há pouco mais de 10 anos tenha ensaiado voltar a recorrer a LPs, realmente desapeguei das mídias físicas.

Mesmo assim sinto falta de um aspecto que costumava integrar os encartes dos discos, tanto digitais quanto analógicos: a ficha técnica das gravações.

Se à medida que fui formando o meu gosto musical, as letras contidas nos álbuns me eram indispensáveis, os créditos dos envolvidos na produção dos discos foram cada vez mais me interessando, sobretudo ao passo que eu começava a dar os meus primeiros passos na composição e na produção musical. Desde o Festival do Desconcerto, lançado em 2005 pelo SeuZé, faço questão de registrar e divulgar cada mínimo detalhe da produção dos discos em que estou envolvido: quem tocou cada instrumento em cada faixa, por exemplo.


Detalhe da ficha técnica do disco A Comédia Humana, lançado pelo SeuZé, em 2010.

Salvo um eventual saudosismo por discos de vinil ou vontades repentinas de ter toda a discografia de Caetano em CDs, estou bastante acostumado e satisfeito com a praticidade e custo-benefício do Spotify e Apple Music, serviços entre os quais costumo revezar. Outro aspecto que me prende ainda mais aos streamings de música é a integração com o Last.fm, essa maravilha da Internet que resiste bravamente, e que me permite praticar a obsessão em metrificar o que ouço ao longo do tempo. É como ter acesso à função “mais ouvidos” que o Spotify disponibiliza em dezembro, a qualquer momento e sem se restringir ao filtro do último ano.


Faixas e discos mais ouvidos por esse que escreve, nos últimos 180 dias, segundo o Last.fm

Entretanto, realmente sinto falta de que os serviços de streaming de música sejam mais ativos em solicitar essas informações das empresas que distribuem as obras dos artistas em suas plataformas. E não falo apenas do detalhamento dos intérpretes e instrumentistas que atuaram em determinado single ou disco, mas também de dados sobre os responsáveis pela gravação, mixagem e masterização de cada fonograma. Gostaria muito de poder fazer com a música que ouço, o que já faço a um tempo com os livros e filmes que consumo.

O Letterboxd, por exemplo, espécie de rede social dedicada ao cinema e serviço de compartilhamento de críticas sobre filmes, organiza o seu catálogo de uma forma que todos os envolvidos na produção de uma película têm os seus nomes clicáveis no aplicativo, com a possibilidade de se ver tudo em que já trabalharam. Dessa forma, ao assistir um filme específico cujos trabalhos de direção ou direção de fotografia me chamaram a atenção, por exemplo, posso facilmente acessar a filmografia dessas pessoas e descobrir com relativa facilidade como continuar explorando as suas obras.

Na falta de funcionalidades semelhantes no Spotify e similares, ou mesmo de aplicativos dedicados para esse fim, alguns livros acabam cumprindo essa função para mim.

Recentemente li Lado C: a trajetória de Caetano Veloso até a reinvenção com a bandaCê e foi através do excelente trabalho de pesquisa de Luiz Felipe Carneiro e Tito Guedes, que tive informações organizadas para explorar a carreira de Pedro Sá - que acompanhou Caetano como guitarrista e produtor nos discos Cê, Zii & Zie e Abraçaço.

O site Discos do Brasil é uma excelente iniciativa nesse sentido, mas depois de me acostumar com as funcionalidades do Letterboxd, faz muito sentido para mim poder acessar essas informações de créditos dos fonogramas diretamente no serviço de streaming que uso.

Aguardo ansioso para poder explorar, de forma descomplicada e com obsessão, as discografias - não apenas de compositores e intérpretes - mas também de técnicos de mixagem, masterização e produtores musicais.